«Mãe, vai ter água?» - Porque fazemos o que fazemos


Fátima Loureiro - Águas de Portugal Internacional

5h da manhã, estou no escritório, na baixa de Luanda, à espera da minha boleia para uma viagem de trabalho até ao norte do país. Mal aguento os olhos de tanto sono...só tarde na noite da véspera é que me foi dito que teria de viajar para ajudar a resolver um problema da maior urgência: a capital da província estava sem água havia mais de uma semana. Com um sorriso simpático de quem sabe que a notícia não vai agradar muito e respondendo rapidamente à expressão interrogativa que eu certamente fazia: «Sim, Fátima ...amanhã tem de ir ao Uíge... vêm buscá-la às...6h.». Seja!

6h30 e nada... às 7h00 toca o telefone: “Dotôra, tive que ir pôr óleo no carro...estou a chegar”.

8h00 e nada... 4 telefonemas depois... ”Estou aqui na Mutamba...mais 15 minutos e estou a chegar”.

Um segundo pequeno-almoço e um segundo café....

Às 9h00 da manhã, o carro finalmente chegou! O motorista, Sózinho de seu nome, não vinha sozinho...trazia a sua companheira. Faríamos os 3 a viagem até ao Uíge.

Foi das viagens mais arrepiantes que já fiz: 360 curvas e praticamente todas elas feitas a cortar, pelo meio da floresta luxuriante em que pouco se vê. Eu a pedir mentalmente para que não aparecesse nenhum veículo de frente. Cheguei a pensar que talvez o Sózinho fosse moçambicano, dada a tendência que tinha em conduzir na faixa contrária. Ainda por cima, a noite dele também devia ter sido curta pois nem a música sertaneja que gritava no carro o impedia de, “quando em vez”, ir pestanejando. 

6 horas de viagem. «Sózinho, não quer parar um bocadinho para descansar?». «Dotôra, não se importa?». «Eu? Nada!», parar dava para refrescar os olhos e beber água, das garrafas que levávamos connosco, e era um salvo-conduto para a nossa segurança.

Chegámos, finalmente. 

A cidade estava sem água há alguns dias, supostamente por avaria da única bomba doseadora de coagulante que ainda estava operacional... Mas, além do problema da bomba, havia um outro problema maior: os funcionários estavam descontentes.

Conversa para aqui, conversa para ali...lá se conseguiu arranjar uma solução alternativa e precária para o doseamento e arrancar com a bomba. Eu e os dois funcionários que consegui convencer a ficar pela promessa de um mata-bicho.

Eu era a pula estrangeira que andava pela Estação, de gobelé na mão, a verificar a qualidade da água, a abrir e fechar válvulas, a subir e descer degraus, a ligar e a desligar bombas, para a frente e para trás a tentar arrancar uma estação que problemas tinha de sobra.

Do outro lado da vedação esperavam ansiosas as mamãs e as meninas com os seus jarrican’s, bidões, latas e bacias vazias, à espera que alguém abrisse a torneira para o fontanário...

«Mãe, vai ter água?», perguntavam-me insistentemente.

Nesse dia, houve água ainda a tempo para cozinhar o jantar, para dar banho às crianças, para colocar a roupa em água e sabão para lavar no dia seguinte. 

Ao entardecer, os reservatórios estavam cheios de água e os rostos sorridentes. Eu estava morta de cansaço, de corpo moído pelos solavancos da viagem, mas cheia de vontade de partilhar esta felicidade. No regresso, estava mais leve e a condução do Sózinho foi bem mais apreciada.

Esta é uma lembrança que já tem anos. Faz parte da coleção de memórias que guardo deste e de outros países por onde tenho andado, como Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau, entre outros. 

Continuo, até hoje, esta caminhada pelo mundo e sinto-me privilegiada por ter um trabalho que ajuda a promover o acesso à água em países onde essa realidade, por umas razões ou outras, em nada é comparável à nossa.

Às vezes são viagens muito tortuosas, que nos castigam os músculos, mas que me enchem a alma e me lembram porque é que eu, e outros como eu, andamos por lá a fazer o que fazemos, esquecendo todas as dificuldades que encontramos no terreno e que rapidamente tornamos minúsculas e banais. É saber que o fazer o que fazemos faz mesmo a diferença na vida das pessoas. 


Fátima Loureiro
Águas de Portugal Internacional

Publicado a: 10 de Janeiro de 2024